REVISITANDO O CACHOEIRO ANTIGO

Em Cachoeiro, o passeio característico, aos domingos, era uma excursão à praia de Marataízes.

A Estrada de Ferro Itapemirim estabelecia horários de verão e concedia passagem de ida e volta a preço popular. Ao atender ao grande número de excursionistas, a Estrada ajuntava carros de passageiros, gôndolas e vagões, para formar a composição. Todos ficavam superlotados, inclusive, muitos passageiros, os mais ousados, viajavam sobre a cobertura dos carros ou agarrados, de qualquer maneira, no truque da máquina.

O desejo de cada um era ir a Marataízes, gente de todos os níveis sociais experimentavam a alegria radiosa e a gratidão, quando o domingo vinha chegando ensolarado.

E, às 6 horas da manhã, partia o trem da estação, localizada na Praça João Pessoa (hoje Pedro Cuevas)*. Vibravam todos passageiros, a grande euforia, o vozerio, o contentamento pela oportunidade de pegar o banho de mar, sentir o
vento iodado e, à tarde, o retorno, queimados pelo sol.

Uma vez, em 1932, participamos de uma dessas excursões. O trenzinho entrou em marcha e suportava a carga pesada. Desde o momento da saída, a algazarra era tremenda. Houve uma rápida parada na estação de Bahia e Minas, por isso estourou a gritaria de protestos, pois ninguém queria perder tempo. Outra parada na estação da Safra – cafezinho, pastéis, banana cozida – o corre-corre, a confusão apressada, os vendedores embaraçados. Mais meia hora, o trenzinho já viajava dentro dos canaviais. O maquinista eufórico acionava o apito, e a composição caminhava como enorme serpente, pelas baixadas do Itapemirim.

Chegada em Paineiras – cafezinho, banana cozida, pastéis e leite- queimado – a invasão desordenada das pessoas. 5 minutos o sinal de partida, o alvoroço, o corre-corre, gente que comeu, gente que não tomou café, gente que nada comeu, gente que nada pagou, rapidamente estavam todos embarcados, os pensamentos estavam fixos na praia e nas ondas frias do mar. Novamente o apito já ao longo do canavial.

A maquinazinha, arrastando a carga humana, vai passando por uma turma de trabalhadores no corte de cana. No trem a gritaria explodiu: “tabaréus”, “pés-duros”, “gafanhotos”, “mata-cobras”, “casca-grossas”, e outros títulos, até que o trem sumiu na distância. Vem as estações de Perobas, Vila de Itapemirim e Barra de Itapemirim.

Finalmente! Marataízes – 9 horas. Os troca-trocas de roupa, os cuidados com a matula, a corrida para dentro do mar, que parecia também prazenteiro. Muitos jogavam bola na areia, outros compravam peixe, abóbora (então famosas), abacaxi e melancia, todos apressados, podia ser que o tempo não fosse bastante.

Às 14 horas nova correria em busca de lugares no trem, a única condução. A partida, em cada olhar uma despedida, olhares que se convergiam para o mar, e íamos perdendo de vista as praias, os barcos, a linha do horizonte. O vento
ficou atrás de tudo. Com uma hora já estávamos dentro dos canaviais, a máquina avançava queimando lenha e parecendo cansada, os excursionistas também fadigados pelos excessos do dia.

De repente os tais cortadores de cana, que se puseram de emboscada, surgiram bem próximos dos carros, munidos de pedaços de bambu, convenientemente entulhados de excrementos de boi amolecido, e varejavam a torto e a direito, atingindo a todos os passageiros, principalmente os que se achavam nas gôndolas, que eram abertas. Em poucos instantes fizeram a borração, e a gente sentia o odor ainda fresco, deixado por toda a parte onde o estrume pôde penetrar. De um lado e outro da estrada, eles estavam organizados para realizar o ataque – em seguida desapareceram pelo canavial adentro.

Às 18 horas, exaustos, queimados pelo sol, já estávamos no calor de Cachoeiro, nossos corpos salgados do mar, as roupas marcadas pela tempestade de estrume. Durante muito tempo aquela excursão ficou conhecida como a ”Maré do Canavial”.

(*) Nota da Redação: … e que hoje se chama Pracinha de Roberto Carlos.

“Uma cidade que não constrói sua memória, não pode ter identidade própria”.

Professor e Historiador Manoel Gonçalves Maciel


Crédito ao Autor, Professor e Historiador Manoel Gonçalves Maciel.
Publicado originalmente em seu antológico livro ”Voltando ao Cachoeiro Antigo”, volume II, 1ª edição, página 126/127.
Garimpamos e publicamos essa matéria na Você+ Digital por autorização especial da sua filha Dra. Margareth

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