PATÉTICO

O padre era dos bons. Do colégio Salesiano. A igreja estava enfeitada de domingo e cheirando a céu. Fomos entrando. Com um respeito e uma cara que parecia duas. O sermão já estava pelo meio na igreja toda. Todo mundo de olho no padre e na missa.

Em Jaciguá, quem não ia à missa ia para o inferno. Quem se escondia da procissão quase se perdia, de tão longe que ficava dela, e, se era pego pelo padre, levava uma bronca descomunal.

Na primeira fila ficavam as crianças, depois cada fila era ocupada por uma camada de gente mais velha, como nas idades. Mulher e homem separados, muito mais do que o joio do trigo. Mesmo assim ficávamos pensando naquele montão de coxas à nossa esquerda.

Quem falava era o padre.  O padre era uma espécie de deus. Beijar a cueca de um padre era privilégio que não sei se as lavadeiras tinham. Tudo em Jaciguá era movido a padre. A bem da verdade não era preciso dizer das vantagens. Só me admira fazer novidade e causar engulho, num século que já está passando de vinte, o atraso da gente.

Pecado era matar passarinho, masturbar-se, ter maus pensamentos, falar mal das professoras, falar mal do padre, responder aos mais velhos, faltar à missa, falar Deus, comer com prazer, cochichar, namorar, olhar de banda, falar da própria desgraça. As outras coisas, com exceção de umas besteiras mais, ou não existia ou Deus queria. Fosse feita a vontade de Deus.

Moral era um troço abestalhado. Deus e o governo eram os donos dela. O padre era o testa de ferro de Deus. E o povo era quem levava as ferradas do governo. Mesmo que você visse e entendesse o absurdo, não era nada disso, você não entendia nada, Você era o absurdado.

Lá dentro da igreja, estávamos, como disse, com os olhos no padre e na missa, com alguns desvios hipnóticos. Uns pensavam no futebol de logo mais, no gol que fria se fosse centroavante. Os casados todos pensavam nas casadas todas e nas solteiras.. E vice-versa. O padre pensava em todos eles. E o padre: – Dominus Vobiscum. E o povo: – Et cum Spiritu Tuum.

Todo mundo pensava uma coisa e fazia outra, e pensa e faz. A gente vive da casca que está por fora. Por dentro tudo é pecado. O sujeito não tem nem direito de sentir, porque pensamento é pecado.

E o padre: “Meus irmãos…”. E a igreja se enchia de ecos, mistérios e fraternidades e andorinhas e chilros. Todo mundo doido para que a missa acabasse logo.

No confessionário, o mistério e a bem-aventurança cresciam como samambaia em terra fria. Até o pé da gente, quando esbarrava nele, fazia um barulho maior do que o imaginado, reboando dentro da igreja como se fossem batedores na bacia enorme da eternidade. O poder que o padre tinha era uma coisa louca. Perdoava tudo, bastando que você tivesse arrependimento.

Posso afirmar que já vivi num mundo mais irreal do que a ficção científica. Pena que não o tenha aproveitado segundo as facilidades todas que oferecia. Eu acreditava mais na ficção como o pão de cada dia.

E o puxavante: Per omnia saecula seculorum. “Você tem que sentir de acordo com o que eu digo de existe. Tem que fazer suas variações dentro de um caixote. Não tente olha para fora, nem para dentro, que é pecado. Tome essa vida para você: sofra, gose e viva com ela, pois, quando morrer, vai para o céu. Lembre-se de que você é um bagulho, um objeto de Deus. E como Deus não vem aqui tão cedo, obedeça ao padre”.

In nomine Pater, Filiis et Spiriti Sancti. Amem.

Disse Fernando Gomes que “Régio Antonio Moulin Batista não era como nós. Era especial e isso nos encantava, meninos com 22 e 23 anos de idade. Enxergava com olhos de poético alcance, o que nós, meros andadores de pés no chão não enxergávamos. Trazia uma marca de nascença”. E emendo eu que esse era mesmo o Régio, que fez de Jaciguá o seu reino e de nós, que o tínhamos por um ser de outro planeta, um pouco dele mesmo. Ele não está mais entre nós e pra mim virou nuvem, porque o vejo com alegria sempre que olho para o céu em dia bonito…

Nota do Editor

Conto extraído do livro Vale da Lua,

de Régio Antonio Moulin Batista (páginas 50 a 53) – 28.10.21

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1 comentário em “PROSAS DO RÉGIO, COLHIDAS NO “VALE DA LUA” II

  1. Régio Antônio Moulin não pode simplesmente ser incluído como parte integrante de uma escala biológica. Ele pairava numa dimensão diferente desse conceito…

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